domingo, julho 11, 2004

Texto "caído" no Correio Electrónico do Poiares-on-line como pertencendo a J.Pacheco Pereira.

Embora não tendo a confirmação da autenticidade da assinatura (não está no Abrupto nem o vimos no Público), aqui vai.

É bem feito. Os sinais estavam lá. As novelas. As intermináveis e desconchavadas novelas em que todas crianças frequentam colégios da Linha e são louras e precocemente parolas. As Lux e as Flash. O telejornal da TVI. O futebolês e a sua miríade de constelações e estrelas, as maiores, as menores e as anãs, os dirigentes, os agentes, os jogadores, as transferências e os treinadores de bancada e de café.
O 24 Horas e as suas manchetes sanguíneas e colunas rosa-choque. Os três diários desportivos. Os Big Brother's e as chusmas de indigentes que revelaram, geraram e adularam. Os caciques locais.

Felgueiras.Agueda. Marco de Canaveses. A justiça, apoucada e achincalhada. A Alexandra Solnado e as conversas de Jesus com a cabritinha. As abstenções, galopantes. A política, trauliteira e lapuz. Os impropérios lançados a esmo, pelos carroceiros e pelas azêmolas que habitam o Parlamento e as autarquias deste país de norte a sul. Os deputados que o são porque dominam as concelhias. O triunfo da demagogia, a vitória fácil do populismo.

A farsa da Madeira, esse espectáculo pornográfico instalado há anos na Casa da Vigia, onde perora um senhor anti-democrata e fascista tipo Bokassa, adulado por um dos dois maiores partidos portugueses.

A lenta agonia da Cultura. A asfixia da Ciência. A sangria, continuada, mortal, dos nossos melhores homens e mulheres, em demanda de melhores países, de outras instituições que os animem, que os reconheçam. A invasão obscena do betão em tudo o que é Parque Natural, zona protegida, Rede Natura, arriba fóssil, rio selvagem, orla costeira.

As oportunidades perdidas. O Alqueva. Os fundos de Coesão. O Fundo Social Europeu.

Os subsídios à agricultura dados de mão beijada a pessoas que não sabem distinguir um cão de uma ovelha. Os jipes. Os condomínios privados. Os montes no Alentejo. As férias no Brasil e as festas no Algarve. Os milhares que provam, provado, o adágio que diz que quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem.

Os Ferraris do Vale do Ave. Os processos que prescreveram. Os jornais, as rádios, as revistas, as televisões que estão na mão de apenas três grandes grupos económicos. As campanhas eleitorais, pagas a peso de ouro, a troco não se sabe bem do quê. As negociatas. As promessas. As mentiras. Os impostos que iriam descer e afinal sobem. O emprego que iria subir e afinal desce. O IVA que já foi a 17% e agora é a 19%.

O Santana Lopes que passou do Sporting para a Figueira, da Figueira para Lisboa e de todas as vezes foi eleito. Democraticamente. E que foi alçado a número dois do PSD estando, por esse facto, na linha de sucessão para o cargo de primeiro-ministro.

E, quando tudo isso aconteceu, onde estávamos nós?

Na praia? No café? Na Ler Devagar, a folhear Heidegger? Em Londres, a admirar Buckingham Palace?

Não sei onde estávamos. Sei, apenas, que estávamos calados. E é por isso que é bem feito.

Demitimo-nos do dever de falar, de esclarecer, de protestar, de votar. E, se alguns, poucos, falavam, muitos assobiavam para o ar, como se não fosse nada connosco. Era sempre com eles, com os políticos. E estávamos errados: a política é nossa. A política somos nós que a devemos fazer, participando, votando, reclamando, exigindo.

Abstivemo-nos e as coisas aconteceram. Os factos surgiram e ficaram impunes. Os acontecimentos seguiram o seu curso, o barco singrou desgovernado, com os incapazes ao leme e os arrivistas a bater palmas. Agora que o impensável se acastela no horizonte, assim ficamos, aflitos, o coração nas mãos, a perguntarmo-nos: como foi possível? Como será possível?

E mais aflitos ainda ficamos porque sabemos: é possível. Pode acontecer.


Pode acontecer que Paulo Portas e Santana Lopes, dois parasitas do poder, dois demagogos, dois populistas, se enquistem em São Bento. Mesmo as eleiçõesantecipadas, a ocorrer, poderão não o impedir. Mais: as eleições poderão até ser o impulso que necessita essa associação simbiótica contra-natura para se declarar vitoriosa. Bastam uma fotografias nas revistas do coração, uns beijinhos nalgumas feiras, uns ósculos nalgumas recepções, três ou quatro discursos ocos, cheios de sonoridade e de impacto televisivo, a aura de salvadores da pátria e dos bons costumes, e lá vai o povinho do futebol, dos morangos com açúcar e do 24 horas a correr às urnas, ungir o Sr.Feliz e o Sr.Contente com os louros do poder.

E, mesmo que não aconteçam eleições, a cartilha está igualmente traçada. Os impostos a cair. As festas para o povo pagas com o erário público, esse erário minguante que à custa de tanto e de tantos foi custosamente aforrado nos dois últimos anos. As promoções em catadupa, os Institutos Estatais criados por decreto, para promover os novos boys e criar novos empregos efémeros. Os gastos à tripa forra para contentar taxistas, sindicatos, peixeiras, comerciantes, função pública.

Os saneamentos. A ostracização dos críticos, dos descontentes, dos que se manifestam.

Tudo isto pode acontecer. Não só por dois anos, mas também por quatro. Ou mais. Até que o dinheiro se acabe ou até que vague o cargo de Presidente de qualquer coisa. Que até pode ser o do País, que a malta nem se importa muito.

Afinal, é fartar vilanagem!

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