segunda-feira, outubro 27, 2003

Ambiente - Rouquidão cívica............


Obter informação, participar nas decisões e aceder à justiça em matéria de ambiente. Eis o objectivo de uma convenção agora ratificada. Para a tão necessária «Perestroika» na nossa Administração e o cumprimento da mais brilhante invenção europeia: a democracia
Alterar tamanho



Parabéns! Desde Agosto deste ano somos todos membros da Convenção de Aarhus. Para um país como o nosso, é uma excelente notícia. Mas quantas pessoas conhecem o «contrato» em causa? E sabem o que foi assinado? Aarhus é o quê? Uma seita? Uma galáxia? Uma marca?

Nenhuma dessas coisas. Trata-se de uma cidade dinamarquesa, onde a UE assinou um compromisso dedicado a estimular as formas de participação da sociedade civil no governo ambiental dos seus países, concretamente sobre três pontos cruciais: acesso à informação, participação pública na tomada de decisões e acesso à justiça em questões ambientais.

Há muito que a Europa, por meio de directivas e lançando mão de recursos tecnológicos modernos («e-government», simulação de projectos...) vem cumprindo um programa persistente de dinamização e modernização da vida democrática, com medidas concretas de desimpedimento burocrático, transparência nos actos administrativos e acesso dos cidadãos a formas de intervenção nas decisões administrativas que os afectam directamente.

Ajudar a cumprir a mais brilhante invenção política da Europa - a Democracia - é afinal o objectivo da convenção agora ratificada por Portugal, e que já entrou em vigor. O Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS) promoveu na Gulbenkian um primeiro debate sobre os seus conteúdos. Mas falta saber o que está preparado tanto na sociedade civil como na Administração Pública, para que a dita convenção não passe de mais uma legislação transposta directamente de Bruxelas para o «Diário da República», e deste para a gaveta.

O balanço da participação e informação cívicas, ao cabo de quase 30 anos de democracia, é muito negativo. O país tem um grande défice informativo. Se é verdade que as pessoas têm hábitos de inércia na busca de informação e na participação, também não vêem a sua vida facilitada em nada. Quando se querem informar deparam com sucessivos bloqueios, obstruções e opacidades.

O Estado ainda hoje não cumpre a sua função de levantar e organizar informação. Apesar de existir desde 1990 uma Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) e uma Comissão para o mesmo acesso - a CADA -, os resultados de ambas são ínfimos. Continuamos com os mais baixos índices de militância associativa da UE. Não se cultivou nem treinou o hábito de participar, dando às pessoas a sensação de que a batota, o amiguismo e a cunha são sempre mais eficazes... O Estado tem-se limitado a cumprir proformas legislativos, como a consulta pública, mas não lança medidas sérias e efectivas para que as pessoas se envolvam nas decisões desde o início.

ANOREXIA CÍVICA




A uma longa sujeição bovina de «come e cala», seguiram-se décadas em que nada de eficaz foi feito para curar a anorexia cívica da maior parte da sociedade civil portuguesa. Fora o carreirismo partidário, olha-se com desconfiança quem se meta em coisas da política ou do poder. As próprias associações cívicas que se não dediquem exclusivamente à caridade ou ao futebol são enxotadas como moscas ou esmagadas como pulgas.

O país pode já não estar amordaçado, mas ninguém se lembrou de lhe recuperar as cordas vocais. Quando não está totalmente afónico, está pelo menos rouco e, de quando em vez, solta umas fífias que espanta os decisores. Por isso, a nossa democracia sofre bem mais do que muitas outras democracias no Ocidente. E essas preocupam-se muito mais do que nós com os perigos reais de desvitalização face ao poder descomunal das forças globais e, muito particularmente, à concentração e capacidade manipulatória dos grandes impérios mediáticos.

Continua-se a impedir aos cidadãos o acesso às informações sobre os actos administrativos; a desmotivar o interesse pela envolvente dos problemas em causa; a calendarizar as consultas públicas obrigatórias para as épocas mais desfavoráveis - Agosto ou Natal; e até a subverter-lhes os resultados, executando decisões superiores no completo desprezo pelo resultado das poucas consultas realizadas. Chegou-se ao cúmulo de proibir as sessões públicas, como no caso da última legislação sobre a avaliação de impacto ambiental.

DEIXEM-NOS PARTICIPAR!



Veja-se o que sucede com o simples acesso à informação. A Liga para a Protecção da Natureza demorou meses a obter da Direcção Regional de Economia de Lisboa o número de licenciamentos de pedreiras de Ourém, ou o parecer do Parque Natural da Madeira sobre a instalação de um duvidoso radar no Pico do Areeiro (que ainda não conseguiu). A Quercus esperou meses para ler o contrato de privatização da cimenteira da Arrábida solicitado ao Ministério das Finanças; ou para aceder ao processo de uma estrada em pleno Parque Natural do Douro Internacional, ou da urbanização Nova Setúbal em montado de sobro.

Razões? Bloqueio da informação. Resultados? Passa o tempo útil de intervir. Como desabafava Helena Freitas, ex-presidente da LPN, na Gulbenkian, ao fim de anos deste calvário, corre-se «o risco da indiferença». Isto são as associações. Agora imagine-se o cidadão comum. O Estado não pára de mandar a sociedade civil lá para baixo, enquanto ele governa lá em cima. Nem de considerar qualquer barulho que lhe chegue aos ouvidos como um entrave ao seu direito olímpico a governar súbditos. «Deixem-nos Trabalhar!». Pois sim. «Deixem-nos Participar!»

Todos os inquéritos revelam uma vontade generalizada de maior participação e de mais informação. Ainda que mantidas em estado de asfixia, as associações multiplicaram-se. Ensaiaram-se petições populares. Começaram a surgir protestos públicos espontâneos e listas de abaixo-assinados. As queixas à CADA quadruplicaram entre 1997 e 2001, tal como aumentaram as queixas às instâncias comunitárias e os apelos aos «media».

A situação é insustentável, porque vai no sentido oposto a tudo quanto vem sendo feito na UE, desde a Agenda Local 21 (que obriga os municípios a mudarem o estilo de governação, no sentido de envolver os munícipes); até à Convenção de Aarhus e às novas directivas sobre acesso à informação.

Para mudar, são precisos reforços nos mecanismos de obtenção, tratamento e divulgação da informação na Administração Pública sobre ambiente e território. Neste sentido, o próprio PR, ao apresentar a Convenção de Aarhus na Gulbenkian, alertou para o absurdo de «uma administração central que dispõe de menos de 1% do seu orçamento para administrar o ambiente, ordenamento e cidades».

O RISCO DA INDIFERENÇA



O CNADS propõe, entre outras coisas, generalizar e divulgar balanços ambientais do país, das autarquias e das empresas. Igualmente, é preciso criar condições práticas que promovam a consulta e acompanhamento dos planos e projectos em todas as suas fases, de modo a que as pessoas não apanhem o «filme» só no fim, evitando incompreensões e reacções negativas. O processo participativo tem de começar cedo.

É preciso criar instituições especializadas na resolução de conflitos ambientais e na obtenção de consensos, multiplicando e desenvolvendo para o ambiente a experiência positiva de formas de justiça como os tribunais arbitrais, os tribunais específicos, os juízos de paz. Além das Provedorias de Ambiente.

A participação pública não é nenhum bicho de sete cabeças. Outros países podem fornecer-nos exemplos de expedientes eficazes para inverter esta situação. À escala municipal, os casos são inúmeros. Em várias cidades europeias e americanas, já não passa pela cabeça dos autarcas que os cidadãos não intervenham em decisões de escala local que afectem a sua vida quotidiana - tais como o destino de um espaço público devoluto, a passagem de estradas ou a construção de um túnel. Fechar ruas do centro de Paris passou por um processo participado. Construir túneis rodoviários em Barcelona, também. O destino a dar a um espaço livre na cidade de Seattle, idem.

Faz parte das regras da democracia e constitui condição essencial para combater a sementeira contrademocrática que tem grassado no país. Quem semeia obstáculos colhe a indiferença pública. E a indiferença pública é a última coisa que acontece antes de uma democracia colapsar.



Texto de Luísa Schmidt
Ilustrações de Luís António / WHO




Inaceitável
É inaceitável que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) obstrua, ilegal e sistematicamente, o acesso de um cidadão - que para mais preside a uma associação cívica, a CIDAMB - à informação sobre processos públicos com interferências graves e determinantes na vida dos habitantes e utentes da cidade de Lisboa.

Foram pedidas informações sobre os processos do túnel do Marquês, do Parque Mayer, das urbanizações do Benfica, do Casino, da autopublicidade camarária. Todos foram recusados, levando José Sá Fernandes a recorrer ao Tribunal Administrativo. Só com a justiça à perna, é que, alguns meses depois, a CML vai largando mão de informações básicas. É uma vergonha para o presidente da CM que os seus serviços não executem actos da mais elementar transparência administrativa.

Entretanto, ganho o acesso a estas informações por força do tribunal, há coisas que ficam irremediavelmente perdidas: preciosos meses de espera durante os quais se criaram factos consumados eventualmente irreversíveis.

A gravidade chega ao ponto de ter sido dificultado o acesso a uma deliberação sobre alterações ao regulamento do Plano Director Municipal (PDM) que vai ter consequências graves no ordenamento urbano de Lisboa - tal como o aumento dos índices de construção e a transformação de usos. Tudo isto à revelia do actual processo de revisão do PDM de Lisboa. No mínimo é suspeito, além de poder ser impugnável.

Estes factos são tanto mais graves quanto acumulam antecedentes no Ministério Público. Este, nos últimos três anos vedou ao mesmo advogado da mesma associação o acesso à informação acerca do imbróglio de um loteamento na envolvente do Palácio da Ajuda (Rua das Açucenas). Além disso, não deu seguimento às queixas apresentadas sobre a destruição de imóveis classificados numa cidade património mundial como é o Porto (devido à Ponte do Infante); o sórdido historial dos loteamento na praia do Abano; a nauseante boçalidade de destruição da Quinta da Bacalhoa - monumento nacional desde 1910; e as urbanizações dos terrenos do Benfica.

A função do Ministério Público é ser «advogado geral» do interesse público. Será?



Alerta
No mesmo ano em que Portugal ratifica uma Convenção onde o acesso a dados e informações é uma peça basilar de toda a vida cívica, política e económica dos países europeus, o Instituto Nacional de Estatística (INE) toma a infeliz decisão de condicionar o acesso a grande parte dessa informação, justamente àqueles que mais necessitam dela e que maior proveito poderão trazer ao país no seu tratamento: os cientistas e investigadores.

Após alguns anos, durante os quais, num gesto de produtiva colaboração (e segundo um acordo com a Fundação de Ciência e Tecnologia), facultou gratuitamente os seus dados para fins científicos, o INE vem agora inverter a situação e reclamar o pagamento desse acesso inviabilizando pela base uma das coisas de que o país mais precisa: conhecimento. Tudo isto depois de ter recebido uma quantia elevada da FCT para criar uma plataforma tecnológica que permitisse, a prazo, o acesso remoto dos investigadores e recuperar informação histórica.

Advinha-se por detrás disto não uma má intenção, mas mais uma triste consequência da chamada «salvação» das contas públicas. Contudo, por este caminho, rapidamente passaremos da desaceleração do desenvolvimento ao regresso à pedra lascada.

Espera-se que a nova equipa do Ministério da Ciência e Ensino Superior, que julgamos mais esclarecida, não demore a emendar este mau passo.



Aprovado
A sociedade civil pode estar muito esmagada, mas está longe de estar morta. Um grupo de cidadãos interessados em que o litoral do país não se transforme todo ele num lixo imprestável desencadeou um abaixo-assinado protestando contra uma sucessão de trafulhices que ameaçam o Parque Natural do Sudoeste Alentejano (www.petitiononline,com/sudoeste). E já recolheu mais de 15 mil assinaturas!

Que interpretação farão deste facto os presidentes do parque, das autarquias, do Instituto de Conservação da Natureza, bem como o secretário de Estado de Ordenamento do Território, o ministro do Ambiente e o primeiro-ministro? E perante a dimensão inusitada desta lista de assinaturas — suficientes para legalizar três partidos — , que não parou ainda de crescer, terá o PR algo a comentar sobre este facto? E que destino se lhe irá dar? O de Bruxelas ou o da dignidade pátria nacional?

Nenhum comentário: